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Desapontados, desmotivados e angustiados. Passam por vários empregos e aquilo que era suposto ser uma condição temporária torna-se permanente. Adiam sonhos, decisões e compromissos. Comprar uma casa ou ter filhos fica para mais tarde. A incerteza é a única certeza. Os “millennials”, que já tantas vezes foram definidos como a geração melhor preparada, “correm o risco, se nada mudar, de ser também a mais desperdiçada de sempre”

Há os estágios, os contratos a termo, os recibos verdes, os trabalhos temporários, os part-times, as bolsas de investigação… A precariedade assume inúmeras formas e os jovens são aqueles com maior probabilidade de cair nestas situações. A geração que hoje está na casa dos 20 a 30 anos vê o fenómeno persistir, tornando-se quase um modo de vida, que não afeta apenas o trabalho e que influencia a maneira como o presente é vivido e a relação com o futuro. Esta é uma das conclusões da investigação conduzida pelo Observatório das Desigualdades e que, esta terça-feira, é apresentado no colóquio “Desigualdades e Precariedade: dos diagnósticos às políticas com futuro”.

“ [A precariedade] É uma situação dominante. Estar desempregado, estar precário, a estagiar e por aí adiante, passou a ser a regra. Atualmente, a exceção é encontrar um jovem que esteja numa situação contratual estável e que tenha a ideia de ter uma carreira”, considera Renato do Carmo, que assina juntamente com Ana Matias a análise “A precariedade como modo de vida: jovens em risco de uma crise existencial”.

Em causa não estão apenas as situações contratuais atípicas, os benefícios sociais limitados, a insegurança profissional ou baixos salários. Há uma dimensão subjetiva associada sobretudo à definição de planos de vida e de futuro. Apesar de quase toda a gente conhecer alguém nestas circunstâncias, diz o investigador e diretor do Observatório das Desigualdades, as consequências que estas acarretam são pouco faladas.

Por um lado, existe “uma espécie de semiautonomia” em que as pessoas não são capazes de ser completamente independentes economicamente. É preciso contar com a ajuda de alguém, seja de um familiar ou amigo, para conseguir “ter alguma margem de manobra. Por outro lado, a incerteza é a única certeza. Os planos para o futuro e os projetos de vida são colocados em espera por tempo indeterminado.

“O futuro torna-se muito nebuloso e há uma grande dificuldade em definir projetos. Refiro-me a coisas relativamente básicas como comprar casa ou ter um filho. Nestas gerações isto já não é um dado adquirido, longe disso”, explica Renato do Carmo. “Os millennials estão nesta situação. As questões do presente e do futuro, que era algo que estava mais ou menos estabilizado nas sociedades modernas, são postas em causa. Há aqui componentes existenciais. As pessoas vivem situações de ansiedade e frustração que, a longo prazo, podem afetar a saúde mental do individuo. A precariedade vai moendo e acaba por ser corrosiva”, acrescenta.

“[Uma amiga disse-me uma vez] ‘chegamos um bocado tarde a tudo’. Acho que é um pouco a frase desta geração. Talvez antes de a crise rebentar, já tendo os nossos cursos, as coisas já tinham funcionado muito melhor. E agora, man power, empresas de trabalho temporário, crise, contratos precários, competitividade no mundo do trabalho – muitos candidatos para uma única oferta. Tudo isto afasta-nos um bocado dos nossos sonhos de poder ter uma vida digna”, lê-se no testemunho de um dos entrevistados para o estudo. Tem 30 anos, é mestre em engenharia civil e dá explicações de Matemática a recibos verdes.

A análise qualitativa apresentada, que embora não seja representativa devido à reduzida amostra, foi realizada com base em 24 entrevistas a jovens, com idades entre os 22 e os 30 anos em situações de precariedade profissional, com formação em diferentes áreas científicas e a viverem na área Metropolitana de Lisboa. “A nossa ideia é ultrapassar um bocadinho a estatística e ir para além dos números que são os habituais. Chegar a estas dimensões mais subjetivas da precariedade e que a estatística não consegue apanhar”, justifica o sociólogo.

Apesar de ideologicamente não concordarem com o trabalho precário, não lhes resta outra solução, acabando por aceitar seja porque aquela é única fonte rendimento ou porque é a forma de adquirir experiência na área de estudos.

O trabalhador precário vai circulando “por vários tipos de trabalho e de atividade fazendo com que a condição de temporário se transforme num estado permanente”. “Este facto é gerador de desapontamento, desmotivação e angústia”, lê-se no estudo.

Há ainda a dimensão política, lembra Renato do Carmo, com consequências na própria democracia. Os jovens desvinculam-se das instituições públicas e do poder, “que não os protege”, e os níveis de desconfiança aumentam ainda mais. O cidadão distancia-se.

“SE NADA MUDAR, CORREMOS O RISCO DE SER A GERAÇÃO MAIS DESPERDIÇADA DE SEMPRE”

Ao contrário do que acontece no norte da Europa, nos países de sul e leste as pessoas que se encontram em situações a prazo a meio-tempo, fazem-no porque não há outra solução. Queriam mais estabilidade, mas não conseguem encontrar emprego com essas condições. Entre os 24 entrevistados, todos referiram, que se pudessem escolher, não estariam na condição laboral em que atualmente se encontram.

“Estamos a falar de pessoas qualificadas e isto é um grande desperdício. No fundo, a precariedade é um grande desperdício: de recursos, de energias e de investimentos que o país foi fazendo, nomeadamente do ponto de vista da educação”, defende Renato do Carmo. “ Estamos a falar da tal geração que se mitificou como a geração mais qualificada de sempre – e é. Se isto continuar desta maneira, não fazendo nada em contrário, corremos talvez o risco de termos aqui a geração mais desperdiçada de sempre. Isto é dramático, especialmente para um país como Portugal, que precisa de jovens e pessoas que trabalhem, que realizem os projetos, que se concretizem”, acrescenta.

Para o investigador, existem sinais de alarme e algo precisa de ser feito rapidamente, pois as consequências não serão apenas para o indivíduo, mas a longo prazo far-se-ão sentir em toda a sociedade. É preciso olhar para o que está a acontecer e pensar como responder.

“Já há muito a ser discutido. Não me posicionando em relação a nenhuma delas, há aqui três vias de políticas públicas, talvez até articuladas, que tem de ser discutidas e até podem ser alternativas interessantes: a proteção dos direitos laborais (repor direitos), a diminuição das horas de trabalho (maior justiça na repartição do trabalho sem implicar a redução de rendimentos) e a questão da redistribuição, por exemplo, associada ao rendimento garantido (isso pode dar-lhes a possibilidade de trabalhar naquilo eu realmente têm vocação e em projetos que querem trabalhar) ”, diz Renato do Carmo.

Segundo os dados do Eurostat, na União Europeia a celebração de contratos temporários com os jovens tem aumentado desde 2005, com pequenas oscilações desde então. Em Portugal, o pico máximo foi atingido em 2015, com 67,5%, enquanto entre os 28 o valor se situou nos 43,3%.

Em 2015, a taxa de desemprego jovem (entre os 15 e 24 anos) em Portugal estava nos 32%, um valor ainda superior aos 20,3% da média da União Europeia. Apenas Grécia, Espanha, Croácia, Itália e Chipre apresentavam valores piores. Por cá, no ano passado, a tendência decrescente dos últimos anos manteve-se, com o valor a chegar aos 28%.

Autoria: Marta Gonçalves